Certamente foi de forma lenta, tão lenta que quase ninguém se deu conta. Mas aconteceu que, pouco a pouco, vimos desaprendendo as coisas e, com isso, perdendo nossa autonomia e, com ela, boa parte de nossa liberdade.
E tem coisa mais importante, depois de sobrevivência e outras coisinhas, do que a nossa liberdade?
O que sei é que desaprendemos coisas simples como saber se defender, saber comer, saber dar vazão à espiritualidade, saber ter bom gosto, saber escolher, saber …
Quando começamos a desaprender? Teria sido quando começou a divisão do trabalho? Quando admitimos o direito à propriedade?
A verdade é que hoje, por exemplo, para quem acredita em uma religião, principalmente nas grandes religiões, o homem desaprendeu a se relacionar com deus, ou com os deuses, sem intermediários. Pastores, rabinos, padres e similares estão aí para interpretar para nós aquilo que deus quis nos dizer. Precisamos de um tradutor daquilo que está na bíblia. Perdemos a capacidade, a competência, de interpretar as coisas por nós mesmos, de nos comunicar com os seres superiores, quando cremos na existência deles. Creio que era bem mais simples quando o sol era nosso deus, ou a terra nossa deusa. Sabíamos a quem e como rezar, sem intermediários. Mas desaprendemos, e hoje, sem intermediários, que muitas vezes nos custam muito caro, não sabemos mais rezar.
Nós, que inventamos o estado, somos hoje incompetentes para nos defendermos perante o próprio. Precisamos de intermediários, de advogados, de juízes. Criamos tantas e tão complexas leis, uma quantidade impossível de se conhecer, que dirá de cumprir. Em conseqüência, terceirizamos nossa defesa, ou seja, não somos mais tão livres quanto antes. Mas em compensação criamos muitos empregos.
Somos tutorados em tudo. Além de não sabermos mais rezar por conta própria e não sabermos (acho que o certo é não podermos) mais nos defender perante o estado que criamos e desaprendemos de saber até do que gostamos: se tivermos algum dinheiro e quisermos construir uma casa, provavelmente contrataremos arquitetos, decoradores e similares, para que eles nos digam do que deveremos gostar para que, com o nosso bom gosto comprado, consigamos impressionar os outros.
Mas um pouco antes de precisarmos dos arquitetos, especialistas absolutamente desnecessários na escolha, digamos, de uma boa caverna para passarmos o inverno, criamos a necessidade de engenheiros, de mil e um tipos, uma verdadeira praga de engenharia.
É que aprendemos a nos aglomerar a tal ponto de vivermos uns sobre os outros, em camadas de 2, 12 20 ou mais andares. De tal forma que, pela manhã, quando freqüentamos o sanitário, pode ser desagradável imaginar o que poderá estar ocorrendo a uma distância não superior a 2 metros da nossa cabeça.
Para vivermos assim, inventamos os engenheiros civis, que se desdobram parta construir prédios, ruas, estradas, pontes, esgotos, etc. complementados por outros engenheiros como os de materiais, químicos, mecânicos, elétricos, …
Ao nos aglomerarmos nas cidades trocamos picadas de cobra por epidemias avassaladoras. Desaprendemos a nos cuidar. Nosso pajé virou médico. E junto com os médicos inventamos a indústria milionária da doença.
Centenas de outras coisas desaprendemos, mas a mais importante para o tema desta página é: desaprendemos a comer. Não sabemos mais o que é bom para nós. Precisamos que as revistas, jornais e a televisão nos ensinem o que faz bem e o que não faz bem para a nossa saúde. Não sabemos mais nem beber água, precisamos que nos digam quanta água beber por dia e, mais ainda, em quais horários. Precisamos dos nutricionistas que nos recomendam o que e quando comer (médicos e professores de educação física também fazem isso) e precisamos de engenheiros (eles, de novo) para “construir” os nossos alimentos. A indústria hoje nos oferece produtos dietéticos, produtos light, zero cal, enriquecidos com ômega 3 e uma imensa parafernália de outras variações. Como sobreviveríamos sem isso? Difícil dizer como nossos antepassados sobreviveram sem isso para nos gerar.
Como conseguiam criar os bebês antigamente se não tinham tanta variedade de leite em pó, papinhas, farinhas lácteas, comidinhas pré-preparadas e uma infinidade de opções de comida infantil saudável?
Decididamente, desaprendemos a comer. Ainda bem que a propaganda daquela empresa vem nos salvar ao colocar à nossa disposição uma margarina que faz bem ao coração.
O problema do desaprender é que passamos a depender. E ao criarmos a dependência, perdemos a liberdade. Nos convenceram de que todas estas coisas (leis, apartamentos, igrejas e leite em pó) são essenciais e benéficas ao ser humano. Com isso perdemos informação básica e, em conseqüência, a liberdade de escolha. Nos deixamos tutelar.
Talvez seja pior: perdemos a capacidade de ousar, nos acomodamos, nos “ovelhamos”. Passamos horas em engarrafamentos, em filas, em frente à televisão, recebendo e repassando e-mails impessoais sobre a verdadeira amizade e o dia do amigo, consumindo toneladas de coisas, comendo e respirando coisas inadmissíveis e, principalmente, aceitando isso como se fosse vida.
Está de bom tamanho querer melhorar isso um pouco, antes que seja tarde demais. Se tudo o que foi citado, aliado aos verdadeiros ataques ambientais que causamos ao planeta, com nossos plásticos não degradáveis, com hormônios artificiais e liberação de carbono não for suficiente para nos liquidar de vez da face do planeta, tenho medo que desaprendamos a nos reproduzir.
Já pensaram?
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